Limiar
Assistimos
a mais duas partidas, e, ao contrário do que havia dito, não
participei de nenhuma delas.
Não entrei no jogo porque estava
apenas com a roupa do corpo e seria bastante incomum entrar numa
partida de voleibol usando calças compridas e camisa social. Além
disso, minhas roupas ficariam suadas, e eu não teria como trocá-las.
Pelo menos foi essa a desculpa que usei para não participar.
Mas,
como ela tinha dito, podemos dar ao nosso medo o nome que quisermos,
e ele continuará nos limitando da mesma forma. Agora sei que, se
quisesse ter participado do jogo, minhas roupas não teriam sido
obstáculo.
Na verdade, faltou resgatar o espírito de criança
que não se contenta em ficar apenas olhando as outras
brincarem.
Quando o calor se tornou mais ameno, ela sugeriu um
novo passeio.
- Que tal irmos ao porto? - perguntou.
- Você é
a chefe da nossa excursão. Seu desejo é uma ordem -
respondi.
Pegamos o carro e seguimos pela avenida em direção ao
porto.
- Estou achando maravilhosa essa nossa viagem e tudo o que
estou aprendendo com você - comentei.
- Mas... Sua frase
continuará com um ‘mas’, não é? - perguntou.
Ri de sua
perspicácia.
- Mas - continuei - devo confessar que sinto muita
dificuldade para pôr em prática esses conhecimentos.
- Todas as
coisas estão o tempo todo diante de seus olhos. Você só não as
verá se não as estiver procurando - comentou.
- Falando parece
fácil - murmurei.
- Quantos parafusos você se lembra de ter
visto hoje? - perguntou subitamente.
- Quantos o quê?! -
exclamei.
- Você ouviu muito bem. Quantos parafusos você se
lembra de ter visto hoje? - repetiu.
- Para ser sincero, nenhum -
respondi.
- Você não viu nenhum porque não os estava
procurando. Quando estiver, encontrará parafusos em todos os
lugares.
Olhei para o painel do carro e imediatamente encontrei
dois parafusos.
- Parafusos são coisas muito comuns -
desdenhei.
- As outras coisas podem exigir uma procura mais
persistente, mas se você não procurá-las jamais as encontrará.
Sem procura, não há descoberta - sentenciou.
Fiquei pensando, em
silêncio.
- Na natureza existe um momento certo para tudo -
continuou. - Se você pegar dois gravetos e esfregar um contra o
outro, o atrito fará a temperatura aumentar. Se continuar
esfregando, a temperatura subirá tanto que, em determinado instante,
um deles começará a pegar fogo. A partir daí você não precisará
mais esfregar, pois o fogo se manterá sozinho.
Ela retirou uma
pequena agenda e uma caneta de sua sacola, anotou alguma coisa e
guardou-as novamente. - A natureza mostra que temos de
manter o esforço durante algum tempo, até o processo atingir seu
limiar, depois ele se mantém por si mesmo
- disse.
- Esfregar gravetos mentais... É uma boa metáfora -
comentei.
- Você tem de iniciar sua busca conscientemente. Isso
exige algum esforço, mas, se sustentá-lo até o limiar, tudo
passará a acontecer sozinho. É uma lei natural - finalizou.
Pensei
em algumas coisas que relutei para aceitar, mas que depois passaram a
fazer parte do meu dia-a-dia.
- É como escovar os dentes, não é?
Quando somos crianças, nossos pais precisam nos obrigar a escovar os
dentes. Depois passamos a fazê-lo espontaneamente e não conseguimos
mais ficar sem escová-los - concluí.
- Escovar os dentes também
é uma boa comparação - brincou.
- O problema são os tropeços
no caminho - comentei. - É difícil manter uma condição nova
durante muito tempo. Veja o caso dos regimes.
Para emagrecer,
basta comer um pouco menos todos os dias, mas pouquíssimas pessoas
conseguem fazê-lo. Somos muito fracos.
- Engano seu - discordou
-, somos muito fortes. O que nos aprisiona é a acomodação.
-
Não sei se sou tão forte assim - confessei.
- Vou contar uma
história que aconteceu quando eu era menina. Certa vez, um circo foi
apresentar-se na cidade em que eu morava. Quando ele estava sendo
montado, um leão fugiu da jaula e saiu pelas ruas da cidade.
Nem
preciso dizer sobre o pânico criado. Ao ver o leão, todos corriam
em busca de um lugar seguro.
Ela fez uma pausa, esperando a cena
se formar em minha imaginação.
- Na rua principal existia uma
pequena oficina de relojoeiro. Ela possuía apenas a porta de entrada
e uma minúscula janela na parede do fundo. O dono era um homem
sedentário; além disso, ele adorava comer e estava dezenas de
quilos acima do peso ideal.
Fiquei imaginando como a história
iria continuar.
- Depois de percorrer diversos lugares, o leão
chegou à rua principal e resolveu entrar pela porta da relojoaria.
Imagine o susto que o pobre homem levou ao ficar frente a frente com
a fera. Numa fração de segundo, ele subiu em sua mesa e saltou pela
janela de trás, escapando ileso. Logo em seguida, o pessoal do circo
conseguiu cercar o leão e levá-lo de volta à jaula.
- Pelo
menos ele passeou um pouco pela cidade - brinquei.
- De fato.
-
E qual é a moral da história? - perguntei.
- Todos na cidade
ficaram curiosos para saber como o gordo relojoeiro havia conseguido
passar pela estreita janela durante a fuga. Bastava olhar para
perceber que era impossível alguém daquele tamanho passar por urna
janela tão pequena. Para mostrar como havia feito, o homem
tentou
repetir a façanha, mas não conseguiu passar nem uma
perna. Até hoje permanece o mistério de como ele conseguiu sair por
aquela janela.
- Faltou o leão para lhe dar um estímulo -
comentei.
- Sem dúvida. A partir daquele dia, percebi que somos
capazes de fazer coisas incríveis. Somos muito mais
fortes, ágeis e inteligentes do que imaginamos. É a acomodação
que nos restringe. Ficamos parados, acreditando que não temos
capacidade para vivermos uma vida extraordinária -
declarou.
- Espero não ter de encontrar um leão para descobrir
minhas capacidades ocultas - gracejei.
- Não se preocupe, os
circos quase nem existem mais. Fica a seu critério desenvolver seus
dons e desfrutar a vida. A natureza só torce por isso.
Ela
virou-se para mim e esperou nossos olhos se encontrarem.
- Preste
atenção no que vou lhe dizer. O paraíso é o lugar
onde nossos sonhos se realizam. E ele pode ser aqui. Só depende de
você.
Permaneci em silêncio durante vários minutos,
deixando a mensagem ecoar em minha mente.
- Fico cada vez mais
surpreso com você - confessei. - Gostaria de saber mais sobre sua
vida. Onde você nasceu, estudou, quais livros leu, tudo.
- Se
você espera uma história de grandes emoções, esqueça. Minha
história é tão comum como a de todos. O passado não tem nenhuma
importância.
É o que faremos daqui para a frente que vale. Não
pense na minha história. Nem pense na sua história. Concentre-se
apenas nas coisas que fará a partir de agora para tornar sua vida
especial.
- Vou tentar.
- Não existe tentar. É fazer ou não
fazer.
- Eu farei. Prometo.
Continuei dirigindo, e não
dissemos mais nada até chegarmos ao porto.
Eu a admirava e
desejava ser capaz de ver o mundo como ela.